04/08/2020

Olá amigos!
Ouçam abaixo o trecho do livro 
Primícias do Reino



O EXCELSO CANTO

 Aquele junho estava ardente, mais do que nos anos anteriores.(11) 
O dia longo murchava lentamente, abafado, enquanto o Sol, semiescondido além dos picos altaneiros, incandescia as nuvens vaporosas, que o vento arrastava no seu carro pulverizado de púrpura e ouro. 
A montanha, de suave aclive, terminava em largo platô salpicado de árvores de pequeno porte, que ofereciam, no entanto, abrigo e agasalho.
Desde cedo a multidão afluíra para ali, como atraída por fascinante expectativa. 
Eram galileus da região em redor: pescadores, agricultores, gente simples e sofredora, sobrecarregada e aflita. 
Eram judeus chegados d’além Jordão, de Jerusalém, estrangeiros da Decápole. 
Misturavam-se as vozes nos dialetos regionais e uniam-se todos na mesma imensa curiosidade feita de expectação e desejo.
Esmagada pelos poderosos, experimentava invariavelmente o desprezo da jactância e da presunção.
Amavam-se aquelas criaturas na sua dor e necessidade, interdependiam-se. 
Aquele Rabi, que os alentava, era o Rei aguardado há séculos, carinhosamente esperado, que os libertaria do opróbrio e da servidão... Ouviram-No e O viram mais de uma vez, e constataram que jamais alguém fizera o que Ele fazia ou falara como Ele falava. 
Acorreram de toda parte: das redondezas do lago e dos campos, das cidades distantes e das aldeias para ouvi-Lo. No ar pairava algo especial. 
O azul doirado dos céus confraternizava com o verde queimado da terra, e a brisa cariciosa chegava do mar, das bandas e contrafortes do Hermon, que se alternavam, para espraiar-se pela imensa planície do Esdrelon, trazendo o acre-doce odor do solo crestado.
A montanha, em sua grandeza especial, é também um símbolo: o Filho do Homem que desce aos homens vencendo as dificuldades do mergulho no abismo, e do Homem que sobe e conduz os homens por sobre escarpas lacerantes até o seio de Deus.
A montanha também é destaque maravilhoso na paisagem. 
Galgar, subir a montanha pode significar vencer os óbices que perturbam o avanço na jornada evolutiva. 
Descer, deixar o monte, é não considerar o empecilho e refazer o caminho, alongar as mãos em direção dos que ficaram tolhidos na retaguarda... 
É muito áspera a descida aos homens para erguê-los a Deus. 
Perder-se entre as querelas humanas para encontrar os Espíritos em perturbação na noite das necessidades aparentes e resplandecer em madrugada sublime, guiando-os por sobre os escombros da véspera, a fim de subirem até o planalto onde brilha, permanentemente, o Sol do claro e demorado Dia.... Descer sem decair. 
Os homens suscitam obstáculos onde existem opiniões e levantam cerros onde estão convenções.
Esquecer-se e vir até os que se debatem nas questiúnculas, que vitalizam com desconcerto emocional e sofreguidão.
Dar-se, integrar-se de tal modo que seja comum a todos, mas a nenhum igual. 
Este o díptico: subir, descer. Subir sem abandonar a baixada e descer sem esquecer os Cimos. 
A montanha, era uma montanha qualquer. E o poema que ali seria apresentado jamais foi ouvido, nunca mais será ouvido em qualquer época, equivalente... O Evangelista Mateus assevera: “E Jesus, vendo a multidão, subiu a um monte...”, enquanto Lucas informa: “E descendo com eles, parou num lugar plano...” Subir ou descer! Não importa. 
A verdade, porém, é que no plano do aclive Ele se deteve e, de pé...
(...) Vestiu-se de poente. 
Auréola refulgente incendiou-lhe os cabelos que a leve brisa desnastrava, esfogueados. 
As vestes abrasadas e a ansiedade do mundo em volta. 
No magote, homens, mulheres e crianças que levariam no cérebro e no coração a Mensagem, o Poema divisor das realidades diferentes.
A multidão era a sua paixão, a sua vida. Amá-la e atendê-la, o seu fanal. 
Sentindo a multidão submissa, magnetizada, esquecida de si mesma, numa sublime comunhão em que extravasava toda a vida, Ele, abrindo a sua boca, os ensinava, dizendo: — Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus!
Os pobres, todos os conheciam. Eram maltrapilhos, malcheirosos, doentes. 
Distendiam a mão que a miséria estiola. 
Eram pobres; no entanto, quantos deles portavam os tesouros da riqueza do espírito! Espírito rico de revolta, possuidor de paixões, dono de vasto cabedal de angústia e mágoa... 
Quais seriam os “pobres de espírito”? O vento perpassa em leve cantilena pela multidão pensante, a raciocinar, no silêncio que se fez espontâneo, na pausa que, natural, se alonga... Os ricos possuem moedas e títulos, propriedades e espíritos ricos de ambições, de orgulho, de misoneísmo. 
Os “pobres de espírito” são os livres de posses e ambições, amantes da liberdade, pugnadores dos direitos alheios, idealistas, cultores da verdade, preparados para a verdade. 
Sem peias atadas à retaguarda, sem ímãs atraentes à frente. 
Semelhantes aos simples, desataviados, e às crianças. Inteiramente livres. 
Candidatos ao Reino dos Céus e súditos dele, desde já. Inocentes porque venceram com o tributo das lágrimas e o patrimônio dos suores. 
Ressarcido o débito, lavadas as mazelas, puros, portanto, sem a vacuidade do “eu”, predispostos à autodeliberação, à autossublimação. 
Livres dos resíduos do mundo, não consumidos, não afligentes. Com todos, ao lado de todos, sem ninguém, não amarrados aos outros, às convenções dos outros. “Pobres de espírito!” 

(11) Mateus, 5: 1 a 48; 6: 1 a 34; 7: 1 a 29. Lucas, 6: 17 a 49 (nota da autora espiritual). 

Fonte: Livro Primícias do Reino, Divaldo Franco, por Amélia Rodrigues