Segue nosso estudo de sexta-feira às 19 h.
Foi assim que, certa noite para nós inesquecível, pobre mulher
cadaverizada foi trazida pelos enfermeiros à sala de nossas atividades
habituais para o socorro necessário.
O corpo seviciado, que imundos trapos mal cobriam, as mãos cujos
dedos terminavam em forma de garras e o semblante completamente alterado por
terrível hipertrofia falavam sem palavras dos longos tormentos de que fora
vítima.
Embora preliminarmente atendida pela enfermagem da Mansão, a
infortunada criatura exalava nauseante bafio.
Druso, no entanto, qual acontecia noutros casos, afagava-lhe a
fronte com paternal carinho.
Finda a prece com que assinalava o início da tarefa assistencial,
começou a aplicação de passes, acordando-lhe as energias. Em seguida, notando
que fundos gemidos se lhe exteriorizavam do peito, o abnegado amigo concentrou
os seus potenciais de força magnética no cérebro da infeliz, que começou a
mover-se, subitamente reanimada.
- Druso!... Druso!... compadece-te de mim!...
Surpreendidos, vimos o chefe da Mansão cambalear, quase
desfalecente, qual se fora atingido por invisíveis raios de angústia e morte.
Mas a estupefação não o atingira tão-somente. Silas, fazendo-se lívido, avançou
para ele, enlaçando-lhe o busto, como se lhe temesse a queda inevitável.
Algo de estranho ocorria, cujo sentido, de pronto, não
conseguíamos perceber.
Buscando dominar-se, o venerável diretor ergueu os olhos lúcidos
para o Alto, em pranto mudo, invocando a inspiração divina, na linguagem da
prece silenciosa em que a alma se comunica particularmente com Deus, e, após
momentos rápidos, perguntou à infeliz:
- Irmã,
que tens a dizer-nos?
A interpelada abriu os olhos que se reviravam nas órbitas, sem
qualquer expressão de lucidez e, parecendo temer a presença de inimigos
ocultos, clamou triste:
- Tragam
meu esposo!... Druso me perdoará... Estou cansada, vencida. . . Por amor de
Deus, libertem-me!... Libertem-me!... Quero ar!... ar puro!... Não terei pago
suficientemente o meu crime?... Não creio que Deus nos criasse para o inferno
sem-fim.
Se errei,
conscientemente, adquirindo grande culpa, não desconheço... que as minhas penas
reparadoras... têm sido igualmente enormes!... Conduzam-me à presença de meu
esposo... para que me ajoelhe... Druso retirar-me-á do local dos réprobos...
Compreenderá
que não sou assim tão cruel, como querem que eu seja... Meu marido era
sumamente bondoso, tratava-me como um pai!... Há quantos anos padeço, ó
Senhor!? Tu que curaste os leprosos e os endemoninhados, estende-me os braços
de amor! Retirame do inferno a que fui arrastada!... Ajuda-me, ó Cristo!...
Deixa que eu recolha do esposo que humilhei o perdão de que necessito, para que
a minha consciência possa orar com fervor!... O remorso é fogo que me
consome!... Piedade!... Piedade!... Piedade!...
Pela primeira vez aos nossos olhos, Silas interferiu no socorro
magnético.
Embora o espanto que se lhe estampava na face, com a tácita
aprovação do chefe que lhe cedia o lugar em silêncio, interrogou, preocupado e
indeciso:
- Como te
chamas?
- Aída. .
. - foi a resposta que nos despertou mais acurada atenção.
O Assistente, contudo, no evidente propósito de obter mais
informes, tão seguros quanto possíveis, continuou indagando em voz trêmula:
- Aída, se
és a esposa de Druso, como nos fazes crer, não te recordas de mais alguém? De
mais alguém que te partilhasse no mundo a vida no lar?.
- Oh!
sim... - retrucou a interlocutora com indizível carinho - lembro-me...
lembro-me... Meu esposo trazia um
filho das primeiras núpcias, um jovem médico de nome Silas...
E, dando-nos a conhecer a extrema fixação mental a que se
ajustava, exclamou sussurrante:
- Onde
está Silas que também não me ouve? A princípio... contrariava-se com a minha
presença... Entretanto... com o tempo... tornou-se-me um filho do coração,
condescendente amigo... Silas!... sim... sim... quem me fez recordar o
passado?!...
Agigantava-se-nos a constrangedora surpresa.
Ambos os socorristas caíram de joelhos em pranto insofreável.
Num átimo, entendemos tudo, rememorando a noite inolvidável em que
Silas algo nos falara de sua história comovente.
A pobre dementada era Aída, a madrasta sofredora.
Somente agora percebíamos que o Instrutor e o Assistente haviam
sido, entre os homens, pai e filho...
Daí, a discreta intimidade com que se associavam, automaticamente, em todos os serviços.
Decerto - pensei -, haviam abraçado aflitiva missão naquele
perseguido instituto de caridade, não apenas atendendo aos desencarnados
infelizes, mas também com elevados objetivos do coração.
Entretanto, não consegui divagar muito tempo, de vez que Druso,
num gesto enternecedor, recolheu a infortunada criatura nos braços generosos e,
genuflexo, após conchegá-la de encontro ao peito, exclamou para o Alto, com voz
sumida em lágrimas:
-
Obrigado, Senhor!... Os penitentes como eu encontram igualmente o seu dia de
graças!... Agora que me devolves ao coração criminoso a companheira que
envenenei no mundo, dá-me forças para que eu possa erguê-la do abismo de
sofrimento a que se precipitou por minha culpa!...
Silas, extremamente abatido, ajudou-o a levantar-se e ambos se
afastaram, carregando consigo aquele trapo de mulher, com a solene emoção de
quem havia conquistado precioso troféu.
Informados de que o serviço magnético não teria prosseguimento
naquela noite, retiramo-nos para nosso aposento particular, confiando-nos ao
estudo das nossas impressões.
. . .