Olá!
Segue nosso estudo de sexta-feira às 19 hs.
Livro Ação e Reação - Capítulo 14 - Resgate interrompido
Leitura inicial:
Vida Feliz
46
Alimenta-te para viver, sem gulodice que leva o homem a viver para comer.
Morre-se mais de excesso ou alimentação irregular do que pela falta de pão.
O exagero e desperdício de uns respondem pela falta e escassez na mesa de outros.
O alimento é benção para a existência corporal, mas as complexas misturas e extravagantes apresentações constituem paixão injustificável ou vício pernicioso.
Usa o alimento com sabedoria e frugalidade, para viveres por longos anos com saúde ideal.
Trecho do estudo:
14
Resgate interrompido
Acompanhando o
Assistente, passamos a cooperar na rearmonização de pequena família domiciliada
em subúrbio de populosa capital.
Ildeu, o chefe da casa,
homem que mal atingira a madureza física, pouco além dos trinta e cinco de
idade, encontrara em Marcela a esposa abnegada e mãe de seus três filhinhos,
Roberto, Sônia e Márcia; entretanto, seduzido pelos encantos da jovem Mara,
moça leviana e inconsequente, tudo fazia para que a esposa o abandonasse.
Marcela, porém, educada
na escola do Dever, dedicava-se ao lar e tudo fazia para não deixar perceber a
própria dor.
Pelos gestos rudes e
pela deplorável conduta em casa, não desconhecia a modificação do pai de seus
filhos, e, recebendo cartas insultuosas da rival que lhe disputava o
companheiro, sabia chorar em silêncio, confiando-as ao fogo para que não
caíssem sob o olhar do esposo.
Doía-nos, cada noite,
vê-la em prece, ao lado das criancinhas.
Roberto, o primogênito,
com nove anos de idade, acariciava-lhe a cabeça, adivinhando-lhe os soluços
imobilizados na garganta, e as duas pequeninas, na inconsciência infantil,
repetiam maquinalmente as orações ditadas pela nobre senhora, oferecendo-as a
Jesus, em favor do “papai”.
Em atormentada vigília
até noite alta, agoniava-se-lhe o espírito, observando Ildeu, estroina,
alcançando o lar, tresandando a licores alcoólicos e exibindo os sinais de
aventuras inconfessáveis.
Se erguia a voz,
lembrando alguma necessidade dos meninos retorquia ele, irritado:
– Vida infame! Sempre
você a recriminar-me, a aborrecer-me, a perseguir-me com censuras e petitórios!...
Se quiser dinheiro, trabalhe. Se eu soubesse que o casamento seria isso, teria preferido
estourar os miolos a assinar um contrato que me escraviza a existência inteira!
. . .
E gritando,
intemperante, mostrava-nos a tela das suas recordações, em que Mara, a jovem
sedutora, lhe surgia à mente, como sendo a mulher ideal. Cotejava-a com a
esmaecida figura da esposa que as dificuldades acabrunhavam e, governado pela
imagem da outra, entregava-se a chocantes excitações, ansiando fugir do lar.
Marcela, em pranto,
suplicava-lhe tolerância e serenidade, acentuando que não desdenhava o serviço.
Despendia o tempo de que
dispunha na cooperação mal remunerada, em favor de lavanderia modesta, contudo,
os afazeres domésticos não lhe permitiam fazer mais.
– Hipócrita! – berrava
o marido que a cólera transtornava – e eu? que pretende você de mim? posso,
acaso, fazer mais? sou um homem dependurado em lojas e armazéns... Devo a
todos!... por sua causa, simplesmente em razão do seu desperdício... Não sei até
quando poderei aturá-la. Não será mais aconselhável regresse você à terra que
teve a infelicidade de vê-la nascer? Seus pais estão vivos...
A pobre criatura em
lágrimas emudecia, mas, sendo a voz dele estentórica, quase sempre o pequeno
Roberto acordava e acorria em socorro da mãezinha, enlaçando-a, estremunhado.
Ildeu avançava sobre o
miúdo interventor a sopapos, clamando com insofreável revolta:
– Saia daqui! saia
daqui!...
E qual se o petiz lhe
não fora filho mas adversário confesso, acrescentava, cerrando os punhos:
– Tenho gana de
matá-lo! . . . matá-lo! . . . Todas as noites, esta mesma pantomima. Bandido!
Palhaço!...
E o menino, agarrado ao
colo materno, sofria pancadas até recolher-se, de novo, ao leito, em pranto
convulsivo.
Entretanto, se as
filhinhas choramingassem, eis que o genitor se desfazia em ternura, ainda mesmo
quando plenamente embriagado, proferindo, bondoso:
– Minhas filhas!...
minhas pobres filhas!... que será de vocês no futuro? é por vocês que ainda me
encontro aqui, tolerando a cruz desta casa!...
E, não raro, ele
próprio ia reacomodá-las no berço.
Silas e nós entrávamos
em ação, a benefício de Marcela e dos filhinhos.
Do atormentado lar,
ameaçado de completa destruição, demandávamos outros setores de serviço, sem
que o Assistente encontrasse oportunidade de administrar-nos esclarecimentos mais
amplos.
Todavia, quase que
diariamente, à noite ali aplicávamos alguns minutos em tarefas que nos falavam
aos refolhos do coração.
Contudo, apesar de
nosso esforço, o chefe da família mostrava-se, cada dia, mais indiferente e
distante.
Enfadado e irritadiço, não
concedia à esposa nem mesmo a gentileza de leve saudação. Fascinado pela outra,
passara a odiá-la. Pretendia desobrigar-se do compromisso assumido e trilhar
nova senda...
No entanto, como
atender ao problema do amor às pequeninas?
– “Sinceramente –
pensava de si para consigo – não amava a Roberto, o filho cujo olhar o acusava
sem palavras, lançando-lhe em rosto o censurável procedimento, mas adorava
Sônia e Márcia, com desvelada ternura... Como ausentar-se delas no desquite provável?
Decerto, a companheira teria assegurados, perante a lei, os direitos de mãe...
Senhora de nobre conduta, Marcela contaria com o favor da Justiça...”
Refletia, refletia...
Ainda assim, não
renunciava ao carinho de Mara, cuja dominação lhe empolgava o sentimento
enfermiço.
Fosse onde fosse,
registrava-lhe a influência sutil, a desfibrar-lhe o caráter e a dobrar-lhe a
cerviz de homem que, até encontrá-la, fora honrado e feliz.
Por vezes, tentava
subtrair-se-lhe ao jugo, mas debalde.
Marcela apresentava o
semblante da disciplina que lhe competia observar e da obrigação que lhe cabia
cumprir, quando Mara, de olhos em fogo, lhe acenava à liberdade e ao prazer.
Foi assim que lhe
nasceu no cérebro doentio uma ideia sinistra: assassinar a esposa, escondendo o
próprio crime, para que a morte dela aos olhos do mundo passasse como sendo
autêntico suicídio.
Para isso alteraria o
roteiro doméstico.
Procuraria abolir o
regime de incompreensão sistemática, daria tréguas à irritação que o senhoreava
e fingiria ternura para ganhar confiança... E, depois de alguns dias, quando
Marcela dormisse, despreocupada, desfechar-lhe-ia uma bala no coração,
despistando a própria polícia.
Acompanhamos-lhe a
evolução do tresloucado plano, porquanto é sempre fácil penetrar o domínio das
formas pensamentos, vagarosamente construídas pelas criaturas que as edificam,
apaixonadas e persistentes, em torno dos próprios passos.
Na aparente calmaria
que sustentava, Ildeu, embora sorrisse, exteriorizava ao nosso olhar o
inconfessável projeto, armando mentalmente o quadro criminoso, detalhe por
detalhe.
Para defender Marcela,
porém, cuja existência era amparada pela Mansão que representávamos, o
Assistente reforçou na casa o serviço de vigilância.
Dois companheiros
nossos, zelosos e abnegados, alternativamente ali passaram a velar, dia e
noite, de modo a entravar o pavoroso delito.