24/04/2020

Olá!

Segue nosso estudo de sexta-feira às 19 hs.
Livro Ação e Reação - Capítulo 13 - Débito Estacionário



Leitura inicial:

XVIII

Pensemos em nós, espíritos em reajuste perante a Lei, como sendo talvez muitos dos tiranos que censuramos, nas galerias da História, e meditemos na abnegação e no heroísmo de quantos nos legaram tudo de bom que hoje possuímos. 

Fonte: Livro O Ligeirinho, Francisco Candido Xavier, pelo Espírito Emmanuel

Trecho do estudo: 

..."Em seguida, convidou-nos a observar o campo orgânico de Sabino. Por fora, sim, era ele dolorosa máscara de anormalidade e aberração. Mirrado, nada medindo além de noventa centímetros e apresentando grande cabeça, aquele corpo disforme, tresandando odores fétidos, inspirava compaixão e repugnância. A fisionomia denotava configuração macacóide, exibindo, porém, no sorriso inconsciente e nos olhos semilúcidos, a expressão de um palhaço triste. Recomendou-nos o Assistente auscultar-lhe o campo íntimo, e, em razão disso, findos alguns minutos de reflexão, assimilei-lhe a faixa mental, observando-lhe as singulares reminiscências... Demonstrando viver essencialmente distante da realidade, a memória de Sabino mergulhava, toda, em quadros estranhos. Corporificados ante a nossa visão espiritual, os pensamentos dele tomavam consistência, compelindo-nos a enxergá-lo qual se sentia em verdade. Víamo-lo em trajes de palaciano bem-posto, influenciando pessoas categorizadas para a consumação de crimes ocultos, a culminarem sempre na flagelação do povo. Viúvas e órfãos, trabalhadores humildes e escravos misérrimos desfilavam nas telas de suas complicadas recordações. Palacetes aristocráticos e mesas opíparas constavam por detalhes faustosos das lembranças que lhe povoavam o espírito... E, ao seu lado, sempre a mesma mulher, cujo porte soberbo revelava Poliana, aquela mesma Poliana que jazia inerme na esteira de palha... Assombrados, identificávamos ambos cercados de luxo e ouro, manchados, porém, de sangue, ao qual se faziam plenamente insensíveis... 
Reconhecíamos sem dificuldade que mantinham consigo escusos compromissos um com o outro, no terreno da crueldade. Sabino, o fidalgo orgulhoso, não tomava conhecimento de Sabino, o anão paralítico. Em absoluta introspecção, revivia o pretérito, com requintes de egolatria, demonstrando-se na posição do homem iludido por mentirosa superioridade à frente dos semelhantes. 
Percebendo-nos a perplexidade, Silas observou: 
– Decerto, não lhe ouviremos a palavra articulada, mudo e surdo qual se encontra, mas podemos consultar-lhe o pensamento, porquanto reagirá em pensamento, respondendo-nos às interpelações, através da conversação ideada. Para isso, porém, é imprescindível lhe dispensemos o tratamento devido à personalidade que julga viver... Mentalizemo-lo como sendo o Barão de S..., titulo que exibiu na existência última e com o qual se desvairou calamitosamente nas trevas da delinqüência e da vaidade. 
Observando as manchas rubras nos quadros vivos das vivas reminiscências em que se enclausurava, perguntei com a gravidade natural que a experiência exigia: 
– Barão, por que tanto sangue em seu caminho? Terão muitos chorado, em torno de sua marcha? Notei, perfeitamente, que ele não recolhera a interrogação com os tímpanos comuns, mas a apreendera em forma de idéia, formulada de si para consigo, devolvendo-nos a seguinte ponderação pelos fios mentais, em que comungávamos um com o outro, sem que me identificasse por seu interlocutor invisível: 
– “Sangue e lágrimas, sim!... Precisei de grande dose de semelhante material em meus empreendimentos... Que triunfador do mundo não terá sangue e lágrimas, na base das pirâmides da fortuna ou da dominação política em que todos eles se apóiam? A vida é um sistema de luta, no qual a Humanidade se divide em dois campos opostos – aquele dos que conquistam e aquele dos que são conquistados... Sou um nobre... Não guardo a vocação de perder... Que importa a aflição dos fracos, se a morte para eles significa descanso e mercê?
Desliguei-me do foco mental em que se lhe exprimiam os pensamentos e, depois de alguns instantes, nos quais se consagrava Hilário ao mesmo exame que me tomara a atenção, o Assistente esclareceu: 
– Segundo é fácil de concluir, ante a perquirição da ciência terrestre vulgar, Sabino será o idiota paralítico, surdo e mudo de nascença... Para nós, no entanto, é um prisioneiro ainda perigoso, engaiolado nos ossos físicos, de cuja tessitura, por agora, não tem qualquer noção, tal o egoísmo que ainda lhe turva a alma, em processo de incontrolável hipertrofia... A sede da posse ignóbil e o orgulho virulento perverteram-lhe a vida íntima, fixando-o em pavoroso labirinto de sinistros enganos, que resultam para ele em completa alienação mental no tempo, de vez que o relógio avança na contagem dos dias, enquanto se mantém parado nas reminiscências em que se supõe dominador na Terra, vivendo o pesadelo criado por si próprio... 
Diante dos problemas que o estudo suscitava, indagou Hilário, surpreso: 
– Mas... onde a vantagem de semelhantes padecimentos? 
Silas esboçou leve expressão de tristeza e considerou: 
– Temos sob nossa atenção lamentável débito congelado. Nosso pobre companheiro, deploravelmente tombado, praticou numerosos delitos na Terra e no Plano Espiritual e, há mais de mil anos, vem sucumbindo, vaidoso e desprevenido, às garras da criminalidade... De existência a existência, não soube senão consumir os recursos do campo físico, tumultuando as paisagens sociais em que o Senhor lhe concedeu viver. Calamidades diversas, como sejam homicídios, rebeliões, extorsões, calúnias, falências, suicídios, abortos e obsessões foram por ele provocados, desde muitos séculos, porquanto nada viu à frente dos olhos senão o seu egoísmo a saciar... Entre o berço e o túmulo, é o desatino incessante, e, do túmulo para o berço, é a maldade fria e inconseqüente, apesar das intercessões de amigos abnegados, que o amparam em novas tentativas de regeneração e levantamento. Quase sempre inspirado nos pontos de vista de Poliana, que lhe vem sendo a companheira de múltiplas jornadas, cristalizou-se como infeliz empresário do crime, agigantando-se-lhe de tal modo o desequilíbrio na existência última, terminada no suicídio indireto através do mergulho deliberado na viciação, que não houve outro remédio para ele senão o insulamento absoluto na carne, ao nevoeiro da romagem presente, na qual o identificamos, assim, como fera enjaulada na armadura de células aviltantes, sob a custódia da mulher que o ajudou nas quedas sucessivas, erigida agora à posição de enfermeira maternal do seu longo infortúnio. Poliana, a companheira fútil e transviada do bem, que habitualmente escolheu para si a condição de boneca do prazer delituoso, acordou, além-túmulo, para as realidades da vida, antes dele... Despertou e sofreu muito, aceitando a tarefa de auxiliá-lo na recuperação em que, por certo, despenderão muito tempo ainda... 
No campo perispiritual do anão ensimesmado, observamos, através da sua aura verde-trevosa, que todas as energias dos seus fulcros vibratórios refluíam sobre os pontos de origem, dando-nos a impressão de que Sabino estava enovelado inteiramente em si mesmo, à maneira da lagarta ilhada no casulo dela própria nascido. 
Às perguntas que não nos foi possível sopitar, respondeu Silas com presteza: 
– Nosso amigo, até que se amadureça em espírito para a renovação necessária, guarda a mente trabalhando em circuito fechado, isto é, pensa constantemente para si mesmo, incapaz da permuta de vibrações com os semelhantes, exceção feita com Poliana, de quem se fez satélite mudo e expectante, como parasita em fronde seivosa. Sabino é um problema de débito estacionário, porque jaz em processo de hibernação espiritual, compulsoriamente enquistado no próprio íntimo, a benefício da comunidade de Espíritos desencarnados e encarnados, porquanto tão expressivos se lhe destacam os gravames de ordem material e moral que a sua presença consciente, na Terra ou no Espaço, provocaria perturbações e tumultos de conseqüências imprevisíveis. Desfruta, desse modo, uma pausa na luta, como ensaio de esquecimento, a fim de que possa, de futuro, encarar o montante dos compromissos em que se enleia, promovendo-lhes solução digna nos séculos próximos, a golpes de férrea vontade na renunciação de si mesmo. – Mas – indagou Hilário, inquieto – não disporia a Espiritualidade Superior de elementos para encarcerá-lo, a distância da carne? 
– Sim – confirmou Silas –, isso não é impossível. Entretanto, se temos enxovias pungentes para a expiação dos crimes que entenebrecem a mente humana, muitas delas a se expressarem por vales de miséria e de horror, é preciso considerar que os delinqüentes aí segregados atraem-se uns aos outros, contagiando-se mutuamente das chagas morais de que são portadores, gerando o inferno em que passam transitoriamente a viver. Por outro lado, contamos com muitas instituições, funcionando à semelhança de estufas, nas quais criaturas desencarnadas dormem pacificamente largos sonos, mergulhadas nos pesadelos que merecem até certo ponto, depois de efetuada a travessia do sepulcro... Em Sabino, contudo, encontramos um caso excepcional de rebeldia e delinqüência sistemáticas, em cujas sombras, um dia, sentiu baquearem-se-lhe as forças. O remorso feriu-lhe o coração como a bala mortífera assalta um tigre solto... A prece fulgurou-lhe na consciência e, antes que a sua nova atitude provocasse reações e vinditas soezes, entre os que lhe seguiam os passos na rota perversa, recolheram-no à Mansão, onde foi naturalmente magnetizado, caindo em hipnose de longo curso, sendo recebido mais tarde pelo carinho de Poliana, então segregada em campo de regeneração pelo sacrifício. Como vemos, tamanhas são as ligações de nosso companheiro nos planos infernais que, por mercê de Jesus, foi ele ocultado provisoriamente neste corpo monstruoso em que se faz não apenas incomunicável, mas também de algum modo irreconhecível, em favor dele próprio. É indispensável que o tempo com a Bondade Divina lhe amparem os problemas aflitivos e complexos. E, fitando-nos serenamente, ajuntou:
 – Compreenderam? 
Sim, havíamos entendido. A experiência, aos nossos olhos, era dura mas lógica, terrível mas justa. E como quem nada mais podia dar ao triste amigo, além do coração, Silas afagou-lhe a cabeça imunda e ofertou-lhe, comovido, a bênção de uma prece.