02/07/2020

Olá!

Segue nosso estudo de sexta-feira às 19 hs.
Livro Ação e Reação - Capítulo 17 - 
Dívida Expirante



Leitura Inicial:

Seja cordato sempre.
É melhor perderes algo numa disputa, do que te engalfinhares numa luta mais prejudicial, que te trará danos maiores.
Não se trata de ter medo, porém de possuir sabedoria.
O homem pacífico é feliz, e as quinquilharias não o podem perturbar.
O problema é de escolha. Que será melhor: ganhar uma altercação, para não ser ignorante ou bobo, ou perdê-la, sendo prudente e sábio?
A cordura sempre vence. O que não logra exteriormente, consegue em paz interna.

 Livro: Vida Feliz - 107 / Joanna de Ângelis & Divaldo P. Franco


Trecho do estudo:

Livro: Ação e Reação

17 - DÍVIDA EXPIRANTE

Era agora num hospital, em triste pavilhão de indigentes, a nova lição que Silas nos reservava.
Ganhando o interior, diversos companheiros acolheram-nos, gentis. E, após saudações amigas, um deles, o Atendente Lago, avançou para o mentor de nossos estudos, cientificando:
- Assistente, o nosso Leo parece gastar os derradeiros recursos da resistência...
Silas agradeceu a informação e explicou que vínhamos justamente para colaborar no descanso de que se fazia credor.
E atravessando longa fila de leitos pobres, nos quais enfermos jaziam padecentes, ao pé de alguns desencarnados em trabalho assistencial, estacamos junto de um doente esquálido e angustiado.
A mortiça claridade de pequena lâmpada, destinada à vigília da noite, vimos Leo, que uma tuberculose pulmonar arrastava ao cepo da morte.
Não obstante a dispnéia, mostrava o olhar calmo e lúcido, revelando perfeita conformação aos padecimentos que o conduziam ao termo da experiência.
Recomendou-nos Silas observar-lhe o corpo, entretanto, não havia muita particularidade a destacar, porquanto os pulmões quase destruídos, através de sucessivas formações cavitárias, haviam provocado tamanho abatimento orgânico, que o vaso físico sob nossos olhos não era mais que um trapo de carne, agora aberto à multiplicação de bacilos vorazes, aliados a exércitos microbianos de variada espécie, a se apinharem, dominadores, na intimidade dos tecidos, assim como inimigos implacáveis a se lhe apoderarem dos restos, senhoreando todos os postos-chaves da defensiva.
Achava-se Leo, desse modo, no veículo denso, à maneira de um homem irremediavelmente condenado à expulsão da sua própria casa.
Todos os sintomas da morte patenteavam-se, iniludíveis.
O coração fatigado assemelhava-se a motor exausto, incapaz de liquidar os problemas da circulação sangüínea, e todos os implementos da aparelhagem respiratória esmoreciam, desnorteados, sob inexorável asfixia.
Leo, moribundo, era um viajante habilitado à grande romagem, tão-somente à espera do sinal de partida.
Ainda assim, estava sereno e portava-se com bravura.
Tão acentuada se lhe evidenciava a acuidade mental, que quase nos percebia a presença.
Silas, que lhe acariciava a fronte com a destra generosa, disse-nos, atencioso:
- Já que vieram para anotar um processo de divida expirante, podem algo perguntar ao companheiro, cuja memória se revela, tanto quanto possível, consciente e vigilante.
- Ouvir-nos-á, porém? - inquiriu Hilário, entre surpreso e compungido.
- Não com os tímpanos da carne, contudo, assinalar-nos-á qualquer indagação em espírito – esclareceu o Assistente, afetuoso.
Dominado de intensa simpatia, inclinei-me sobre o irmão em rude prova, atraído pela fé que lhe abrilhantava as pupilas e, abraçando-o, indaguei, em voz alta:
- Leo amigo, reconhece-se você no limiar da vida verdadeira? Sabe que deixará o corpo em breves horas?
O interpelado, crendo raciocinar por si mesmo, registrou-me a inquirição, palavra por palavra, qual se lhe fossem transmitidas ao cérebro por fios invisíveis. E, como se conversasse a sós consigo, falou findo:
- Oh! sim, a morte!... Sei que, provavelmente esta noite, chegarei ao justo fim...
Desdobrando o nosso diálogo, acrescentei:
- Não tem receio?
- Nada posso temer... - refletiu muito calmo.
E, movendo os olhos com esforço, buscou fitar na alva parede da enfermaria uma pequena escultura do Cristo crucificado, refletindo de si para consigo:
- Nada posso recear, em companhia do Cristo, meu Salvador... Ele também foi vilipendiado e esquecido... Terá vomitado sangue na cruz do martírio, Ele que era puro, varado pelas chagas da ingratidão... Por que não me resignar à cruz do meu leito, suportando, sem reclamar, as golfadas de sangue que de quando em quando me anunciam a morte, eu que sou pecador necessitado da complacência divina?!...
- Você é católico romano?
- Sim...
Meditei na sublimidade do sentimento cristão, vivo e sincero, seja qual for a escola religiosa em que se exprima, e prossegui, afagando-lhe o peito opresso:
- Nesta hora de tanta significação para o seu caminho, sinto a ausência de seus familiares humanos...
- Ah! meus familiares... meus afetos... - respondeu, falando mentalmente - meus pais teriam sido no mundo os meus únicos amigos... No entanto, demandaram o túmulo, quando eu era simplesmente um jovem enfermo... Separado de minha mãe, vi-me entregue aos desajustes orgânicos... Logo após, meu irmão Henrique não hesitou em declarar-me incapaz... Por direito à herança, cabiam-lhe grandes bens, contudo, prevalecendo-se do meu infortúnio o mano obteve da Justiça, com meu próprio assentimento, a documentação com que se fazia meu tutor... Bastou, porém, a consecução dessa medida, para que se transformasse para mim num verdugo cruel...
Apossou-se-me de todos os recursos... Internou-me num hospício, em que amarguei longos anos de isolamento... Sofri muito... Alimentei-me com o pão recheado de fel, destinado pelo mundo aos que lhe penetram as portas como réprobos do berço, porque o desequilíbrio mental me perseguia desde a idade mais tenra... Quando algo melhorado, fui constrangido a deixar o manicômio. Recorri-lhe à porta, mas expulsou-me sem compaixão... Fiquei apavorado, vencido... Ó meu Deus, como escarnecer assim de um irmão doente e infeliz?.
Debalde impetrei socorro à Justiça. Legalmente, Henrique era o único senhor dos haveres de nossa casa...Envergonhado, busquei outros climas... Tentei o trabalho digno, mas apenas obtive, em meu favor, a profissão de vigia noturno, passando a rondar vasto edifício comercial, amparado por um homem caridoso, condoído de minha fome... O frio da noite, porém, encontrava-me ao desabrigo e, a breve tempo, adquiri uma febre insidiosa que passou a devorar-me devagarinho... Não sei quanto tempo estive, assim, chumbado a indefinível desânimo... Certa feita, caí fatigado sobre a poça de sangue que se me derramava da boca e criaturas piedosas me angariaram o leito em que me refugio...
- E que opinião mantém você, acerca de Henrique? Lembra-se dele com mágoa?
Qual se mergulhasse a memória em ondas de enternecimento e saudade, Leo deixou que as lágrimas se lhe entornassem dos olhos, em dolorosa quietude mental.
Em seguida, monologou por dentro:
- Pobre Henrique!... Não deverei, antes, lastimá-lo? Acaso, não deverá ele igualmente morrer? De que lhe terá valido a apropriação indébita se será também um dia alijado do corpo? por que me reportaria a perdão, se ele é mais infeliz que eu mesmo?
E, tornando a pousar os olhos na figura do Cristo, continuou:
- Jesus, escarnecido e espancado, esqueceu ofensas e deserções... Içado à cruz, não clamou contra os amigos que o haviam lançado à humilhação e ao sofrimento... Não teve uma palavra de censura para os truculentos algozes... Ao invés de incriminá-los, pedira ao Pai Celeste amorosa proteção para todos... E Jesus foi o Embaixador de Deus entre os homens... Com que direito julgarei, assim, meu próprio irmão, se eu, alma necessitada de luz, não posso penetrar os Divinos Juízos da Providência?
Aquietara-se Leo em pranto, buscando internar a mente no templo de amor da prece.
A humildade a que se recolhia tocava-me o coração.
Ergui-me de olhos úmidos.
Para sondar-lhe a grandeza dalma, não seria preciso alongar o interrogatório.
Hilário, que se mostrava comovido até às lágrimas, desistiu de qualquer consulta, apenas inquirindo ao Assistente se o agonizante estava reencarnado sob os auspícios da Mansão, ao que Silas informou, prestativo:
- Sim, Leo vive tutelado por nossa casa. Aliás, temos algumas centenas de criaturas que, não obstante materializadas na carne, permanecem ligadas à nossa instituição pelas raízes dos débitos a que se prendem, geralmente todas elas em estágios difíceis de regeneração, porque delinqüentes em reajuste. Renascem no mundo sob a guarda de nosso estabelecimento socorrista, mas naturalmente ainda enleadas, de certo modo, aos parceiros do pretérito, com cuja influência tomam contacto, consolidando as qualidades morais de que necessitam, através dos conflitos interiores que podemos classificar como sendo a forja da tentação.
- Como é belo apreciar o amor paternal de Deus que a tudo atende no lugar próprio!... - clamou Hilário.
- Sem dúvida - considerou Silas, sensatamente -, a Lei de Deus determina o progresso e a dignidade para todos. Sabem vocês que, via de regra, os desencarnados que se asilam na Mansão constituem grande ajuntamento de criminosos e viciados...
E, modificando a inflexão de voz, acrescentou:
- Como eu mesmo. Ali recebemos atenção e carinho, assistência e bondade, reeducando-nos, às vezes, por muitos anos... Contudo, é imperioso observar que, recolhendo a generosidade dos benfeitores e instrutores que nos garantem aquele pouso de amor, apenas acumulamos débitos com a proteção imerecida, compromissos esses que precisamos resgatar, igualmente em serviço ao próximo. Todavia, a fim de que nos habilitemos para as tarefas do bem genuíno, é imprescindível purgar a nossa condição inferior, agravada na culpa, porquanto o conhecimento elevado, adquirido em nossa organização, vale mais como teoria nobilitante, que nos cabe substancializar na prática correspondente, para que se incorpore, em definitivo, ao nosso patrimônio moral. Eis por que, depois do aprendizado breve ou longo em nosso instituto, somos novamente internados na esfera da carne e, aí, é óbvio que, apesar de protegidos por nossos mentores, deveremos sofrer a aproximação dos antigos comparsas de nossos delitos, para demonstrar aproveitamento e assimilação do amparo recebido.
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