Olá!
Segue nosso estudo de sexta-feira às 19 h.
Livro Ação e Reação
Capítulo 17 - Dívida Expirante
(Final)
Leitura Inicial
Em torno do Futuro
Emmanuel
Não
precisas procurar adivinhos para saber o que te espera, nem necessitas daqueles
outros que te descubram o passado que já conheces pelas próprias tendências.
A
vida é o presente vivo e imperecível.
Na
tela das horas, somos o ontem que se foi e seremos o amanhã que virá.
A
semente plantada resume todas as nossas cogitações em torno do porvir.
Terás
o que cultivas.
Não
colherás figos na macieira e vice-versa.
Ciente
de que todos os pensamentos e atos são sementeiras de destino, seleciona o
material que consideres adequado à tua felicidade e centraliza-o no serviço do
bem aos semelhantes.
Do
que deres presentemente, recolherás os resultados depois.
O
futuro começa agora.
Cede
hoje à vida o que possuas de melhor e, amanhã, aquilo que a vida tenha de
melhor te responderá.
* * * *
17
Dívida expirante (final)
Ao nosso lado, porém, Léo contava os derradeiros minutos
no veículo denso e notamos que o Assistente não desejava ausentar-se do caso
dele, para que lhe guardássemos a lição.
Talvez por isso mesmo, Silas ministrou-lhe energias novas
ao peito exausto, através de passes balsamizantes, falando-nos em seguida:
– Vocês ouviram as alegações mentais do companheiro que
se despede...
Hilário, que ardia de curiosidade, tanto quanto eu
faminto de novas elucidações, indagou, reverente:
– Em que ponto será lícito considerar a presente
desencarnação de Léo como débito expirante?
Nosso interlocutor fixou expressivo gesto e informou:
– Decerto, não me reportarei à conta integral de nosso
amigo, perante a Lei. Não disponho pessoalmente de recursos informativos para
relacionar-lhe as dívidas e créditos no tempo. Referirme-ei, por isso,
tão-somente à culpa que o atormentava, quando ingressou em nossa casa, segundo
os apontamentos que lá poderemos compulsar.
O agonizante agora, de nervos asserenados pelo socorro
magnético, parecia quase ouvir-nos. Sustentando-lhe a fronte suarenta, Silas,
atencioso, prosseguiu, depois de leve pausa:
– Léo enfileirou mentalmente para nós as amargas
recordações dos dias recentes que tem vivido, detendo-se particularmente na
enfermidade que o martiriza desde o berço, nos tormentos do hospício e na
dureza de um irmão que o sentenciou à extrema penúria...
Vejamos. porém, a razão das dores com que pune a si mesmo
e porque mereceu a felicidade de ressarcir para sempre o débito particular,
agora na pauta de nosso estudo... Em princípios do século passado, era ele
filho dileto de abastados fidalgos citadinos que, desencarnados muito cedo, lhe
confiaram o próprio irmão doente, o jovem Fernando, cuja existência fora
marcada por incurável idiotia.
Ernesto, no entanto – pois era esse o nome de nosso Léo,
na existência última –, tão logo se viu sem a presença dos genitores, deu-se
pressa em alijar o irmão do seu convívio, cioso do governo total sobre a avantajada
fortuna de que ambos se faziam herdeiros.
Além disso, moço habituado aos saraus do seu tempo,
estimava as recepções esmeradas, nas quais o palacete da família descerrava as
portas brasonadas às relações elegantes, e, orgulhoso da paisagem doméstica,
envergonhava-se de ombrear com o irmão, por ele proibido de comparecer aos seus
ágapes sociais. Todavia, porque Fernando, mentecapto, não lhe atendesse às
ordens, em razão da incapacidade de apreendê-las, providenciou gradeada prisão,
ao fundo da residência, onde o rapaz enfermo foi excluído da comunidade
familiar. Encarcerado e sozinho, desfrutando apenas a intimidade de alguns
escravos, Fernando passou a viver engaiolado, qual se fora infeliz animal.
Enquanto isso, Ernesto, casado, dava largas aos caprichos
da mulher, em extensas viagens de recreio, nas quais desperdiçava seus bens, em
jogatinas e extravagâncias. Depois de algum tempo, esgotado nas finanças de que
podia dispor, apenas conseguiria reequilibrar-se por morte do mano
irresponsável; no entanto, o jovem mentalmente enfermo dava mostras de grande
fortaleza física, não obstante certa bronquite crônica que muito o incomodava.
Observando-lhe o desequilíbrio respiratório, Ernesto
planejou levá-lo a moléstia mais grave, na esperança de remetê-lo com rapidez
ao sepulcro, recomendando aos servos que o libertassem, todas as noites, num
grande pátio, em que Fernando repousasse ao relento.
O moço, porém, denotava enorme resistência e, embora
sofresse consecutivas crises de sua moléstia, assim exposto à intempérie, durante
quase dois anos superou valorosamente a provação a que fora submetido.
Entrementes, padecia Ernesto o cerco de angústia econômica sempre mais grave,
que somente o quinhão amoedado de Fernando, entregue ao comando de velhos amigos,
conforme a vontade paterna, poderia solucionar.
Em razão disso, envilecido pela fome de ouro, certa noite
liberou dois escravos delinquentes, algemados em seu domicílio, sob a condição
de se exilarem para terras distantes e, após vê-los partir, sob o nevoeiro da
madrugada, buscou o leito do irmão, enterrando-lhe um punhal no peito inerme...
Na manhã seguinte, ante o choro dos servos, a lhe mostrarem
o cadáver, fê-los admitir que os cativos fujões teriam sido os autores do crime
e, inocentando-se com astúcia, entrou na posse dos bens que pertenciam ao
morto, com plena aprovação dos magistrados terrestres. Foi assim que, apesar de
regalada existência na carne, ao aportar no além-túmulo atravessou extensa faixa
de expiações. Fernando, o irmão desditoso, com absoluta magnanimidade
esqueceu-lhe as ofensas; no entanto, vergastado pelos remorsos, Ernesto entrou
em comunhão com impassíveis agentes da sombra, que o fizeram presa de
inomináveis torturas, por se recusar a segui-los nas práticas infernais.
Conservando no imo d’alma a lembrança da vítima, através
da percussão mental do arrependimento sobre os centros perispiríticos,
enlouqueceu de dor, vagueando por vários lustros, em tenebrosas paisagens, até que,
recolhido à nossa instituição, foi convenientemente tratado para o reajuste
preciso. Não obstante recuperado, porém, as reminiscências do crime
absorviam-lhe o espírito de tal sorte que, para o retorno à marcha evolutiva
normal, implorou o regresso à carne, a fim de experimentar a mesma vergonha, a
mesma penúria e as mesmas provas por ele infligidas ao irmão indefeso,
pacificando, desse modo, a consciência intranquila.
Amparado em seus
propósitos de resgate por eminentes instrutores, tornou ao campo físico, carreando
na própria alma os desequilíbrios que assimilou além do sepulcro, com os quais
renasceu alienado mental, como o próprio Fernando no passado recente, tendo
amargado, na posição de Léo, todos os infortúnios por ele impostos ao irmão
debilitado e infeliz. Ressurgiu, dessa forma, na esfera carnal, desditoso e doente.
Cedo conheceu a orfandade, foi colhido de surpresa pela secura e vilania de um
irmão insensato que o filhou no ambiente sombrio de um manicômio e, para não
faltar particularidade alguma ao quadro expiatório, padeceu como guarda-noturno
o frio e os temporais a que expusera a vítima indefesa...
Entretanto, pela humildade e paciência com que tem sabido
aceitar os golpes reparadores, conquistou a felicidade de encerrar em
definitivo o débito a que nos reportamos.
Porque emudecesse o orientador, preocupado em atender ao agonizante,
então banhado pelo suor característico da morte, Hilário indagou:
– Assistente, como entender que o nosso companheiro está
liquidando a dívida a que se refere?
– Pois não vêem? – observou Silas, admirado.
E, indicando a grande hemoptise que começava, ajuntou:
– Qual Fernando, que desencarnou com o tórax perfurado
por lâmina assassina, Léo igualmente se despede do corpo com os pulmões em
frangalhos. Contudo, pelo procedimento correto que adotou perante a Lei,
atravessa o mesmo suplício, mas no leito, sem escândalos destrutivos, embora
esteja vertendo o próprio sangue pela boca, tal qual sucedeu ao mano
espezinhado e vencido.
Cumpre-se o aresto da justiça, apenas com a diferença de
que, em vez do gládio de ferro, temos aqui batalhões de bacilos assassinos... Talvez
porque nos visse o assombro, ante a lição, ocupado embora na assistência ao
moribundo, rematou com grave tom de voz:
– Quando a nossa dor não gera novas dores e nossa aflição
não cria aflições naqueles que nos rodeiam, nossa dívida está em processo de
encerramento. Muitas vezes, o leito de angústia entre os homens é o altar
bendito em que conseguimos extinguir compromissos ominosos, pagando nossas
contas, sem que o nosso resgate a ninguém mais prejudique.
Quando o enfermo sabe acatar os Celestes Desígnios, entre
a conformação e a humildade, traz consigo o sinal da dívida expirante...
Silas, contudo, não pôde continuar. Léo, em oração,
debatia-se nos estertores da morte.
O Assistente enlaçou-o, com carinhoso enternecimento e
exorou o Amparo Divino, como se o doente desventurado lhe fosse um filho do
coração. Envolvido nas irradiações suaves da prece, Léo adormeceu, diante de
nossas lágrimas.
Porque perguntássemos quanto ao motivo pelo qual não o
arrebataríamos, de imediato, ao vaso cadavérico, para transportá-lo conosco à
Mansão, o Assistente informou-nos, conciso:
– Não dispomos de autoridade para desligá-lo do corpo.
Semelhante responsabilidade não nos compete.
E, comunicando aos vigilantes que missionários da
libertação viriam, em breves horas, em socorro do companheiro que descansava, meditativo
e emocionado propôs-nos regressar à Mansão.
* * * *