10/07/2020

Olá!

Segue nosso estudo de sexta-feira às 19 h.
Livro Ação e Reação  
Capítulo 17 - Dívida Expirante 
(Final)


Leitura Inicial

Em torno  do  Futuro

Emmanuel
  
Não precisas procurar adivinhos para saber o que te espera, nem necessitas daqueles outros que te descubram o passado que já conheces pelas próprias tendências.

A vida é o presente vivo e imperecível.

Na tela das horas, somos o ontem que se foi e seremos o amanhã que virá.

A semente plantada resume todas as nossas cogitações em torno do porvir.

Terás o que cultivas.

Não colherás figos na macieira e vice-versa.

Ciente de que todos os pensamentos e atos são sementeiras de destino, seleciona o material que consideres adequado à tua felicidade e centraliza-o no serviço do bem aos semelhantes.

Do que deres presentemente, recolherás os resultados depois.

O futuro começa agora.

Cede hoje à vida o que possuas de melhor e, amanhã, aquilo que a vida tenha de melhor te responderá.

 “JOIA” - Chico Xavier - Emmanuel e  André Luiz.





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17

 Dívida expirante (final)



Ao nosso lado, porém, Léo contava os derradeiros minutos no veículo denso e notamos que o Assistente não desejava ausentar-se do caso dele, para que lhe guardássemos a lição.

Talvez por isso mesmo, Silas ministrou-lhe energias novas ao peito exausto, através de passes balsamizantes, falando-nos em seguida:

– Vocês ouviram as alegações mentais do companheiro que se despede...

Hilário, que ardia de curiosidade, tanto quanto eu faminto de novas elucidações, indagou, reverente:

– Em que ponto será lícito considerar a presente desencarnação de Léo como débito expirante?

Nosso interlocutor fixou expressivo gesto e informou:

– Decerto, não me reportarei à conta integral de nosso amigo, perante a Lei. Não disponho pessoalmente de recursos informativos para relacionar-lhe as dívidas e créditos no tempo. Referirme-ei, por isso, tão-somente à culpa que o atormentava, quando ingressou em nossa casa, segundo os apontamentos que lá poderemos compulsar.

O agonizante agora, de nervos asserenados pelo socorro magnético, parecia quase ouvir-nos. Sustentando-lhe a fronte suarenta, Silas, atencioso, prosseguiu, depois de leve pausa:

– Léo enfileirou mentalmente para nós as amargas recordações dos dias recentes que tem vivido, detendo-se particularmente na enfermidade que o martiriza desde o berço, nos tormentos do hospício e na dureza de um irmão que o sentenciou à extrema penúria...

Vejamos. porém, a razão das dores com que pune a si mesmo e porque mereceu a felicidade de ressarcir para sempre o débito particular, agora na pauta de nosso estudo... Em princípios do século passado, era ele filho dileto de abastados fidalgos citadinos que, desencarnados muito cedo, lhe confiaram o próprio irmão doente, o jovem Fernando, cuja existência fora marcada por incurável idiotia.

Ernesto, no entanto – pois era esse o nome de nosso Léo, na existência última –, tão logo se viu sem a presença dos genitores, deu-se pressa em alijar o irmão do seu convívio, cioso do governo total sobre a avantajada fortuna de que ambos se faziam herdeiros.

Além disso, moço habituado aos saraus do seu tempo, estimava as recepções esmeradas, nas quais o palacete da família descerrava as portas brasonadas às relações elegantes, e, orgulhoso da paisagem doméstica, envergonhava-se de ombrear com o irmão, por ele proibido de comparecer aos seus ágapes sociais. Todavia, porque Fernando, mentecapto, não lhe atendesse às ordens, em razão da incapacidade de apreendê-las, providenciou gradeada prisão, ao fundo da residência, onde o rapaz enfermo foi excluído da comunidade familiar. Encarcerado e sozinho, desfrutando apenas a intimidade de alguns escravos, Fernando passou a viver engaiolado, qual se fora infeliz animal.

Enquanto isso, Ernesto, casado, dava largas aos caprichos da mulher, em extensas viagens de recreio, nas quais desperdiçava seus bens, em jogatinas e extravagâncias. Depois de algum tempo, esgotado nas finanças de que podia dispor, apenas conseguiria reequilibrar-se por morte do mano irresponsável; no entanto, o jovem mentalmente enfermo dava mostras de grande fortaleza física, não obstante certa bronquite crônica que muito o incomodava.

Observando-lhe o desequilíbrio respiratório, Ernesto planejou levá-lo a moléstia mais grave, na esperança de remetê-lo com rapidez ao sepulcro, recomendando aos servos que o libertassem, todas as noites, num grande pátio, em que Fernando repousasse ao relento.

O moço, porém, denotava enorme resistência e, embora sofresse consecutivas crises de sua moléstia, assim exposto à intempérie, durante quase dois anos superou valorosamente a provação a que fora submetido. Entrementes, padecia Ernesto o cerco de angústia econômica sempre mais grave, que somente o quinhão amoedado de Fernando, entregue ao comando de velhos amigos, conforme a vontade paterna, poderia solucionar.

Em razão disso, envilecido pela fome de ouro, certa noite liberou dois escravos delinquentes, algemados em seu domicílio, sob a condição de se exilarem para terras distantes e, após vê-los partir, sob o nevoeiro da madrugada, buscou o leito do irmão, enterrando-lhe um punhal no peito inerme...

Na manhã seguinte, ante o choro dos servos, a lhe mostrarem o cadáver, fê-los admitir que os cativos fujões teriam sido os autores do crime e, inocentando-se com astúcia, entrou na posse dos bens que pertenciam ao morto, com plena aprovação dos magistrados terrestres. Foi assim que, apesar de regalada existência na carne, ao aportar no além-túmulo atravessou extensa faixa de expiações. Fernando, o irmão desditoso, com absoluta magnanimidade esqueceu-lhe as ofensas; no entanto, vergastado pelos remorsos, Ernesto entrou em comunhão com impassíveis agentes da sombra, que o fizeram presa de inomináveis torturas, por se recusar a segui-los nas práticas infernais.

Conservando no imo d’alma a lembrança da vítima, através da percussão mental do arrependimento sobre os centros perispiríticos, enlouqueceu de dor, vagueando por vários lustros, em tenebrosas paisagens, até que, recolhido à nossa instituição, foi convenientemente tratado para o reajuste preciso. Não obstante recuperado, porém, as reminiscências do crime absorviam-lhe o espírito de tal sorte que, para o retorno à marcha evolutiva normal, implorou o regresso à carne, a fim de experimentar a mesma vergonha, a mesma penúria e as mesmas provas por ele infligidas ao irmão indefeso, pacificando, desse modo, a consciência intranquila.

 Amparado em seus propósitos de resgate por eminentes instrutores, tornou ao campo físico, carreando na própria alma os desequilíbrios que assimilou além do sepulcro, com os quais renasceu alienado mental, como o próprio Fernando no passado recente, tendo amargado, na posição de Léo, todos os infortúnios por ele impostos ao irmão debilitado e infeliz. Ressurgiu, dessa forma, na esfera carnal, desditoso e doente. Cedo conheceu a orfandade, foi colhido de surpresa pela secura e vilania de um irmão insensato que o filhou no ambiente sombrio de um manicômio e, para não faltar particularidade alguma ao quadro expiatório, padeceu como guarda-noturno o frio e os temporais a que expusera a vítima indefesa...

Entretanto, pela humildade e paciência com que tem sabido aceitar os golpes reparadores, conquistou a felicidade de encerrar em definitivo o débito a que nos reportamos.

Porque emudecesse o orientador, preocupado em atender ao agonizante, então banhado pelo suor característico da morte, Hilário indagou:

– Assistente, como entender que o nosso companheiro está liquidando a dívida a que se refere?

– Pois não vêem? – observou Silas, admirado.

E, indicando a grande hemoptise que começava, ajuntou:

– Qual Fernando, que desencarnou com o tórax perfurado por lâmina assassina, Léo igualmente se despede do corpo com os pulmões em frangalhos. Contudo, pelo procedimento correto que adotou perante a Lei, atravessa o mesmo suplício, mas no leito, sem escândalos destrutivos, embora esteja vertendo o próprio sangue pela boca, tal qual sucedeu ao mano espezinhado e vencido.

Cumpre-se o aresto da justiça, apenas com a diferença de que, em vez do gládio de ferro, temos aqui batalhões de bacilos assassinos... Talvez porque nos visse o assombro, ante a lição, ocupado embora na assistência ao moribundo, rematou com grave tom de voz:

– Quando a nossa dor não gera novas dores e nossa aflição não cria aflições naqueles que nos rodeiam, nossa dívida está em processo de encerramento. Muitas vezes, o leito de angústia entre os homens é o altar bendito em que conseguimos extinguir compromissos ominosos, pagando nossas contas, sem que o nosso resgate a ninguém mais prejudique.

Quando o enfermo sabe acatar os Celestes Desígnios, entre a conformação e a humildade, traz consigo o sinal da dívida expirante...

Silas, contudo, não pôde continuar. Léo, em oração, debatia-se nos estertores da morte.

O Assistente enlaçou-o, com carinhoso enternecimento e exorou o Amparo Divino, como se o doente desventurado lhe fosse um filho do coração. Envolvido nas irradiações suaves da prece, Léo adormeceu, diante de nossas lágrimas.

Porque perguntássemos quanto ao motivo pelo qual não o arrebataríamos, de imediato, ao vaso cadavérico, para transportá-lo conosco à Mansão, o Assistente informou-nos, conciso:

– Não dispomos de autoridade para desligá-lo do corpo. Semelhante responsabilidade não nos compete.

E, comunicando aos vigilantes que missionários da libertação viriam, em breves horas, em socorro do companheiro que descansava, meditativo e emocionado propôs-nos regressar à Mansão.


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